terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Memória e Ficção: Uma Vida é Só Uma Vida Capítulo II

                                                          Memória e Ficção: Uma Vida é Só Uma Vida
                                                          Capitulo II



            “Nunca mais pude ver Manuela.” Foi o que registrei precedentemente. Penso que “nunca” é palavra perigosa. A expressão “nunca mais”, mistifica situações e sugere desistência, além de precipitar saudade e nostalgia.
             Manuela não foi pra sempre de mim e nem da vida. Seu semblante perdurara em meu ser o tempo todo. Uma presença arrebatadora. Não compreendia que sentimentos, ou, que sentimento. Se eram muitos, ou, um sentimento apenas. Sentia-me numa prisão passional, metafórica. Tinha a sensação de já ter vivido tudo, mesmo sendo ainda um menino. Era uma prisão paradoxal, estranha, corrosiva. Surpreendentemente também confortável, pois permitia certas convicções e dentre todas, uma certeza apaziguadora de que eu queria “estar do lado dos prisioneiros e não dos carcereiros.” De todo modo, eu era refém de uma situação. Porém com a verdade do pensamento e da linguagem da criança, eu vivia tudo aquilo e não sabia o motivo. Mas tinha medo. Medo de que pudesse estar me regalando da condição de doença de Manuela. Assim, embalando-me de ser absolutamente saudável. O que não é raro entre alguns.
              De vez em quando, perguntava-me, por quais dilemas passava Manuela? Recorria vez ou outra, à minha mãe, inquirindo-a sobre Manuela. Se não iriam trazê-la de volta para a sua casa?! Meu medo maior era de que ela não existisse mais, como meu cachorro Rex, que se foi de um instante ao outro, e nunca mais pude vê-lo. A casa de Manuela continuava a mesma, assim eu pensava. Seu pai saía todos os dias cedo. Seus irmãos com o mesmo semblante de sempre. Sua mãe conversava com minha mãe o tempo todo, parecia, secretamente. Mas suas jóias expostas de uma maneira arrogante tornavam-na uma figura caricata e sem sentimentos, assim eu pensava, não sabia o que os outros pensavam disso.
              Um dia, em meus contatos secretos e solitários com a morte pedi que essa me desse à luz de como estava e o que acontecia com nossa colega-minha e de vocês leitores que me acompanham nesse caso. Sem titubear, ela a morte, definiu bem tudo: “tratava-se de uma falência da vida. E o motivo estava em tudo que aquele ser de sofrimento, não conseguira em toda a sua vida, contemplar como referenciais, ou seja: afeto; olhar, que pudesse sugerir futuro; segurança, que orientasse saídas nos momentos difíceis e por fim, o pai, que era um pai patrão. Seu pai não sinalizava um sentido existencial.” A morte era sempre, me parecia, imparcial e assertiva. Em nenhum momento passava a mão em minha cabeça. Surpreendentemente, sem alento, e de pronto, veicula que, “Manuela estava em um lugar em que todos que estavam ali, se correspondiam confusamente, mas que entre eles havia entendimento. Às vezes, se arrastavam pelo chão, defecavam e se mijavam e que entre eles haviam alguns que se diziam saudáveis e autorizados e que sugeriam para a sociedade que tratavam desses seres infelizes.” Por último, de uma maneira tranqüila a morte anunciou, “gostar muito de fazer plantão lá no hospital, pois naquele lugar, ela era muito benvinda”.
               Fiquei grilado com a expressão “Pai Patrão”. O que de fato quis dizer a morte?
Manuela era vítima do próprio pai? E, de repente, tudo que se fazia em mim interrogação, aparece do nada-do nada não, de uma gaveta-de forma resoluta, o que eu precisava esclarecer. Procurando uma agulha em uma gaveta, em minha casa, deparo-me com uma carta de Manuela para seu pai. Supus que a mãe dela teria passado para minha mãe para que esta, lesse e desse sua opinião, e dessa maneira, a mãe de Manuela entregaria a carta, ou não, para o pai da garota.
               Guardo esta primeira e mais duas encontradas do mesmo jeito e que anunciarei para você leitor, de modo que possamos compartilhar tudo desse caso tão instigante e inusitado. Todas as cartas tinham letras garranchadas, o que me levou a grande dificuldade para lê-las.
Segue a primeira carta:

“Pai”,
Peço desculpas por estar gerando tanto transtorno e talvez vergonha, não sei, para nossa família. Pai, já de muito vinha me sentindo muito fragilizada e vivendo uma vida de medo...
Os dias se tornavam mais e mais insuportáveis. Meu peito doe ao ponto de eu pensar em explodir, sempre a angústia tem sido a pauta maior de meu cotidiano. Sinto-me desamparada. Sem olhar de pai e mãe. Você, por um lado, vivendo sua vida de negócios e, assim, sem nenhuma atenção para seus filhos, sem nenhum olhar; sem nenhum afeto. Tanto é desse jeito, que você não veio em nenhum momento me ver. O que me faz mais entristecer é me deparar com todos os outros pacientes recebendo a visita de seus pais a todo tempo. Não quero o pai dos outros, pois quero apenas o meu. Pai está tudo confuso. Está tudo caótico. Tem horas que ouço vozes me atacando, dizendo que eu não mereço viver, que é melhor morrer. Por outro lado pai, tenho a sensação de que minha mãe é egoísta, vaidosa e não tem sensibilidade nenhuma para com meu sofrimento. Todas as vezes que esteve aqui no hospital veio como se estivesse vindo a uma festa de tão produzida e com tantas jóias.
Pai, minha tristeza é dilacerante. Choro o tempo todo e não consigo dormir, mesmo estando encharcada de remédios.
Apesar de tudo te amo e sinto muita saudade de você.  Adoro-te. “Te amo, te amo.”
                A segunda carta encontrada era objetiva e surpreendentemente assustadora, me deixando atônito e escandalosamente triste. Num papel amassado e sujo, talvez manchado de lágrimas, apenas dizia:

“Pai”,
Estou morrendo. Adeus!  “Sua filha que muito lhe ama e precisa.”

                 Deixo a terceira carta para um outro momento. Crio coragem e peço para que minha mãe me levasse até nossa protagonista. O que me foi concedido.
                 Ao chegar ao Hospital Espírita Caminhos para São José, encontro Manuela magra, com uma expressão de uma tristeza tão profunda, com os olhos vermelhos e esbugalhados e os cabelos totalmente oleosos e embaraçados, cena que me levou ao choro disfarçado. Manuela somente passou a mão em minha cabeça, deu um sorriso e não falou absolutamente nada. Fui embora levando Manuela comigo. Vi Manuela!

3 comentários:

  1. Que bom ele ter voltado a vê-la! Por sinal, fico curiosa em saber como se chama esse personagem tão cativante. Aguardo ainda mais ansiosa pela continuação. Shirley

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  2. Não tem como ler e não interagir nessa história tão surpreendente; o desenrolar do contexto nos cativa, nos instiga a querer conhecer cada vez mais, é uma sensação muito gratificante. Aguardo ansiosa os próximos capítulos.

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  3. "Espetacular" é a palavra que não sai de minha mente após deliciarme com esta leitura fascinante.
    A cada dia minha admiração pelo seu trabalho vem se deslumbrando mais e mais.

    Apenas tenho a lhe dizer sucesso, pois, vencedor o senhor já se tornou.
    Abraços
    Andreza

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