terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Memória e Ficção: Uma Vida é Só Uma Vida Capítulo II

                                                          Memória e Ficção: Uma Vida é Só Uma Vida
                                                          Capitulo II



            “Nunca mais pude ver Manuela.” Foi o que registrei precedentemente. Penso que “nunca” é palavra perigosa. A expressão “nunca mais”, mistifica situações e sugere desistência, além de precipitar saudade e nostalgia.
             Manuela não foi pra sempre de mim e nem da vida. Seu semblante perdurara em meu ser o tempo todo. Uma presença arrebatadora. Não compreendia que sentimentos, ou, que sentimento. Se eram muitos, ou, um sentimento apenas. Sentia-me numa prisão passional, metafórica. Tinha a sensação de já ter vivido tudo, mesmo sendo ainda um menino. Era uma prisão paradoxal, estranha, corrosiva. Surpreendentemente também confortável, pois permitia certas convicções e dentre todas, uma certeza apaziguadora de que eu queria “estar do lado dos prisioneiros e não dos carcereiros.” De todo modo, eu era refém de uma situação. Porém com a verdade do pensamento e da linguagem da criança, eu vivia tudo aquilo e não sabia o motivo. Mas tinha medo. Medo de que pudesse estar me regalando da condição de doença de Manuela. Assim, embalando-me de ser absolutamente saudável. O que não é raro entre alguns.
              De vez em quando, perguntava-me, por quais dilemas passava Manuela? Recorria vez ou outra, à minha mãe, inquirindo-a sobre Manuela. Se não iriam trazê-la de volta para a sua casa?! Meu medo maior era de que ela não existisse mais, como meu cachorro Rex, que se foi de um instante ao outro, e nunca mais pude vê-lo. A casa de Manuela continuava a mesma, assim eu pensava. Seu pai saía todos os dias cedo. Seus irmãos com o mesmo semblante de sempre. Sua mãe conversava com minha mãe o tempo todo, parecia, secretamente. Mas suas jóias expostas de uma maneira arrogante tornavam-na uma figura caricata e sem sentimentos, assim eu pensava, não sabia o que os outros pensavam disso.
              Um dia, em meus contatos secretos e solitários com a morte pedi que essa me desse à luz de como estava e o que acontecia com nossa colega-minha e de vocês leitores que me acompanham nesse caso. Sem titubear, ela a morte, definiu bem tudo: “tratava-se de uma falência da vida. E o motivo estava em tudo que aquele ser de sofrimento, não conseguira em toda a sua vida, contemplar como referenciais, ou seja: afeto; olhar, que pudesse sugerir futuro; segurança, que orientasse saídas nos momentos difíceis e por fim, o pai, que era um pai patrão. Seu pai não sinalizava um sentido existencial.” A morte era sempre, me parecia, imparcial e assertiva. Em nenhum momento passava a mão em minha cabeça. Surpreendentemente, sem alento, e de pronto, veicula que, “Manuela estava em um lugar em que todos que estavam ali, se correspondiam confusamente, mas que entre eles havia entendimento. Às vezes, se arrastavam pelo chão, defecavam e se mijavam e que entre eles haviam alguns que se diziam saudáveis e autorizados e que sugeriam para a sociedade que tratavam desses seres infelizes.” Por último, de uma maneira tranqüila a morte anunciou, “gostar muito de fazer plantão lá no hospital, pois naquele lugar, ela era muito benvinda”.
               Fiquei grilado com a expressão “Pai Patrão”. O que de fato quis dizer a morte?
Manuela era vítima do próprio pai? E, de repente, tudo que se fazia em mim interrogação, aparece do nada-do nada não, de uma gaveta-de forma resoluta, o que eu precisava esclarecer. Procurando uma agulha em uma gaveta, em minha casa, deparo-me com uma carta de Manuela para seu pai. Supus que a mãe dela teria passado para minha mãe para que esta, lesse e desse sua opinião, e dessa maneira, a mãe de Manuela entregaria a carta, ou não, para o pai da garota.
               Guardo esta primeira e mais duas encontradas do mesmo jeito e que anunciarei para você leitor, de modo que possamos compartilhar tudo desse caso tão instigante e inusitado. Todas as cartas tinham letras garranchadas, o que me levou a grande dificuldade para lê-las.
Segue a primeira carta:

“Pai”,
Peço desculpas por estar gerando tanto transtorno e talvez vergonha, não sei, para nossa família. Pai, já de muito vinha me sentindo muito fragilizada e vivendo uma vida de medo...
Os dias se tornavam mais e mais insuportáveis. Meu peito doe ao ponto de eu pensar em explodir, sempre a angústia tem sido a pauta maior de meu cotidiano. Sinto-me desamparada. Sem olhar de pai e mãe. Você, por um lado, vivendo sua vida de negócios e, assim, sem nenhuma atenção para seus filhos, sem nenhum olhar; sem nenhum afeto. Tanto é desse jeito, que você não veio em nenhum momento me ver. O que me faz mais entristecer é me deparar com todos os outros pacientes recebendo a visita de seus pais a todo tempo. Não quero o pai dos outros, pois quero apenas o meu. Pai está tudo confuso. Está tudo caótico. Tem horas que ouço vozes me atacando, dizendo que eu não mereço viver, que é melhor morrer. Por outro lado pai, tenho a sensação de que minha mãe é egoísta, vaidosa e não tem sensibilidade nenhuma para com meu sofrimento. Todas as vezes que esteve aqui no hospital veio como se estivesse vindo a uma festa de tão produzida e com tantas jóias.
Pai, minha tristeza é dilacerante. Choro o tempo todo e não consigo dormir, mesmo estando encharcada de remédios.
Apesar de tudo te amo e sinto muita saudade de você.  Adoro-te. “Te amo, te amo.”
                A segunda carta encontrada era objetiva e surpreendentemente assustadora, me deixando atônito e escandalosamente triste. Num papel amassado e sujo, talvez manchado de lágrimas, apenas dizia:

“Pai”,
Estou morrendo. Adeus!  “Sua filha que muito lhe ama e precisa.”

                 Deixo a terceira carta para um outro momento. Crio coragem e peço para que minha mãe me levasse até nossa protagonista. O que me foi concedido.
                 Ao chegar ao Hospital Espírita Caminhos para São José, encontro Manuela magra, com uma expressão de uma tristeza tão profunda, com os olhos vermelhos e esbugalhados e os cabelos totalmente oleosos e embaraçados, cena que me levou ao choro disfarçado. Manuela somente passou a mão em minha cabeça, deu um sorriso e não falou absolutamente nada. Fui embora levando Manuela comigo. Vi Manuela!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um bom livro e um cafezinho

Eu e Priscila Coelho batemos um papo sobre literatura e café, assistam:

http://redesuper.com.br/amplificador/um-bom-livro-e-um-cafezinho/

Memória e Ficção: Uma Vida é Só Uma Vida




As manhãs eram claras. O cheiro do café insinuava a beleza da vida.

Lembro-me da sensação de que todos dormiam e acordavam felizes e com a certeza de que a vida era para sempre. Pois que tudo acontecia de modo simples e prazeroso.

As pessoas conversavam muito; olhavam umas para as outras. Olhares, sem dúvida, que veiculavam  sentimentos e sugeriam parceria.

Todos esperavam o anoitecer para compartilhar o cotidiano. Esse, geralmente, rico de detalhes e revelador de destino a favor.

Tenho a lembrança incerta de que se trata de 1960. As crianças brincavam soltas e criativas; umas eram Tarzan, outras Gary Cooper. Sonhávamos sempre com o outro dia e antes do sono profundo e descompromissado, era quase certa a especulação sobre as surpresas do novo dia que estaria por acontecer.

Lembro-me de meu pai sereno, sentado no jardim, ouvindo Maysa, Anísio Silva, Orlando Dias e Dolores Duran. As músicas me faziam questão e me jogavam para um estado de nostalgia que me acompanha até aqui e penso, jamais, irá me deixar.

Morávamos num bangalô branco com janelas verdes. Tinha um pátio que tomava toda à frente da casa e seu piso era de uma cerâmica vermelha. Os espaços do interior do bangalô eram amplos, o que permitia que tivéssemos sempre uma sensação de total liberdade. Havia uma escada de madeira que fazia a passagem do térreo para os cômodos do andar superior.

Lembro-me que à noite, ficávamos, eu e meus irmãos, esperando o momento dos fantasmas subindo e descendo os degraus; os fantasmas homens faziam barulhos graves e os fantasmas mulheres precipitavam barulhos agudos com seus sapatos altos. Tremíamos e colocávamos a cabeça sob os travesseiros. Narrávamos uns para os outros os detalhes de cada fantasma. Se homem, gordo ou velho; se uma mulher, bonita ou feia. Porém, o medo era impressionante e mais mobilizador de histrionismo quando pensávamos ser o fantasma criança.

Tudo era alegria, pois, achava que todas as pessoas eram felizes; sem exceção crianças e adultos, até meus cachorros: o Rex e a Laika.

Entretanto, da noite para o dia, tudo de um mundo suposto alegria, risos e brincadeiras, fora bater em outra porta, a da angústia. Não compreendia muitas coisas que pareciam de simples compreensão para a maioria das pessoas. Ficava muito ressaltado em minha alma o envelhecimento triste de alguns, o semblante de tristeza de uns jovens e as fachadas das casas denunciadoras de

Lares sem amor e de sofrimento. Eventos que estavam muito perto. Olhava para as pessoas tentando perscrutar suas almas; o que estariam pensando; o que estariam sentindo;  se tristes ou alegres.

Eu era o menino estranho, calado, porém muito observador. Tinha a sensação de
que nos ambientes chamava a atenção de todos, fosse ambiente familiar e, ou, ambiente outro.

Quando os enigmas da existência passaram a me fazer questão, o Inferno relatado nas igrejas passara a existir dentro de mim. Pois, a angústia e a tristeza começaram a fazer parte do meu cotidiano. Não conseguia dormir, a dor no peito era  penosa e dilacerante. Fazia de tudo para que alguém, meus pais, ou até amigos, pudessem compreender o que eu vivia.

Penso até que os pais não têm vocação nenhuma para compreenderem a dor da alma dos filhos. São perfeitamente vocacionados e se tornam especialistas em sorrisos e alegrias. Pois gostam e sempre visualizam a expressão de felicidade daqueles que vem ao mundo para fazer o papel de precipitadores de alegria e de solucionadores de ideal. Os pais viram o rosto e o olhar fica de soslaio para a angustia e a dor da alma daqueles que ainda não sabem se defender.

Duas casas à direita de minha casa morava a família Quaresma. Penso que era o pai, a mãe e cinco filhos. Era uma família abastada. A casa era muito luxuosa. O pai um comerciante realizado. Comercializava gêneros alimentícios e, parece, também tinha torrefação de café. Era um homem conversador e sugeria estar sempre alegre. Cumprimentava todo mundo, porém dentro de sua casa, carregava uma fisionomia carrancuda. Diziam que não gostava dos filhos, porém, que para o resto do mundo significava uma pessoa sensível e disponível. Gostava de falar de caridade e se achava o homem íntimo de Deus e dos santos. Seus filhos eram calados e eu tinha a impressão de que viviam tristes e sem rumo. Quatro deles eram já mais velhos circundando a faixa dos 25 e 20 anos. A mais jovem tinha 18 anos e era chamada de Manuela.
Sempre que passava Manuela me cumprimentava e eu a tomava sempre como uma moça frágil e seu olhar induzia uma dúvida sobre o destino. Ao contrário a mãe estava constantemente- tinha-se a impressão- olhando para o mundo e as pessoas com total indiferença. Saía todos os dias para os salões de beleza, suas indumentárias eram ricas de detalhes e de cores. Andava sempre com muitas jóias e penteada. Era realmente uma mãe diferente, pois nunca se observava manifestações afetivas para com os filhos, como havia de outras mães. Sua existência era a alarmante  impunidade diante das tragédias do mundo.

Num domingo de manhã chuvosa, surpreendo-me com a senhora Maysa Quaresma sendo atendida por minha mãe que por seu lado depois do encontro dera alguns telefonemas. Fiquei imediatamente atento e curioso para o fato. Não demorou em que eu compreendesse que algo de muito grave estaria acontecendo com Manuela. Ou, Melhor, há muito tempo Manuela clamava por ajuda. Pois ela entristecida, recuada do mundo, existência voyerista da insensibilidade e da indiferença dos pais.
Penso que o espelho pelo qual o pai se vê deverá repercutir cuidados e projetos quanto ao destino do filho. E a mãe que se apega a um cotidiano pautado pelo supérfluo impede a filha de consistência vivencial e de referência do que é ser mulher.

Assim Manuela infeliz reduzida a um mundo que era seu quarto clamando refúgios no peito do outro. Performances inadequadas em tudo que significava
sua vida. Angustiada e deprimida, além de que insone, sofria sem amparo, vivendo uma dor sem explicação, padecia na solidão de seu ser. A dor era intensa e emergia de cada poro sem aviso, dor única; dor proveniente de fonte velada na infância da mesa farta, porém sem olhar que favorece a construção da alma.

Um dia após a constatação de que algo ocorria com Manuela, ficara sabendo que a moça triste do bairro iria se submeter a tratamento. Vi quando a ambulância chegara à casa dos Quaresma e fiquei de prontidão. Espantei-me com o quadro com o qual me deparei, ou seja: Manuela descabelada e magra urrava como um animal e se debatia nas mãos daqueles homens que não carregavam uma pessoa, mas, sim, parecia uma boneca de pano profundamente gasta pelo tempo. Colocaram-na para dentro da ambulância. No entanto, minha amiga, promovida pelo meu imaginário infantil, cruzara o olhar rapidamente com o meu, como que, talvez, se despedindo, para que eu nunca mais deixasse de nela pensar. Nunca mais pude ver Manuela.

Empurrava os dias não sabia para onde. Pesaroso e silenciado, ouvia os gritos de Manuela. Sua máscara de horror repercutia em meu ser denunciando o espectro sobre-humano. Em meu silêncio de incompreensão traduzia tudo aquilo num idioma inconcebível e não existente. Os comentários no meu entorno me irritavam.  Haveria de existir uma saída para minha perplexidade e o terror,
imaginava, pelo qual passava Manuela. Procurava Manuela em todas as gretas da existência humana.  Olhava para o sol e esperava a lua. Contava os dias obsessivamente. Andava para todos os lados. Às vezes, sentia-me adulto, maduro. Às vezes, sentia-me um bebê que se depara com a complexidade de tudo. Imaginava-a risonha e solucionando tudo apenas como uma  brincadeira. Pensava-a ironizando a fartura na qual vivera imersa.

Eu a desenhava inteira, bonita, e, sem constrangimento, concebia-a com roupas diferentes das que trajava normalmente. Fazia-a tomar posse de todas as jóias de sua mãe. E, muitas vezes, até desenhava-a contando todo o dinheiro de seu pai. Porém, sabia que eram apenas simulações autorizadas pelos desenhos. Aquilo tudo não confortaria Manuela e não a traria de volta. A realidade era única, Manuela estava longe desse mundo. Estaria falando outra língua. Sem dúvida, sua mente, estaria exercitando novos raciocínios e criando novos seres, que não os comuns. Enfim, seu olhar configurava novas luzes, jamais vistas. Portanto, anjos
verdadeiros faziam parte de sua interpessoalidade. Não mais os anjos forjados, dessa maneira, invejosos, ciumentos e desleais.

A busca interminável, a lágrima por vir. E nada mais será como antes. As noites não me darão mais sonhos- esse é o sentimento. Os sonhos se deslocam dos seus instantes nas noites e passam a abrir meus olhos apropriados de um único olhar-
olhar de outrora, do ontem que se faz hoje. Somente isso, mais nada.

Pascal, parece solucionar assim, não de outro modo, “Toda a infelicidade do homem deriva de uma única coisa: ele é incapaz de ficar tranqüilamente em
seu “quarto”.

Minhas noites eram intermináveis. Enfiava-me embaixo dos lençóis com os olhos abertos tentando planejar alívio. Limpava minhas lágrimas com o mesmo lençol que me separava do mundo. Minha dor amalgamava-se com a dor daquela
que estava longe e perto. A distância comprimia e me dissolvia. Ninguém sabia ninguém queria saber o que eu vivia, muito menos o que sofria. Recordava o rosto de Manuela, ouvia sua voz. Inventava diálogos e gestos. Tudo inconsistente, tudo volátil. Sobrava mesmo o barulho das folhas das árvores delirando e alucinando a primavera de um novo  tempo.

Comentários: “Manuela está muito mal”;  “Ela está fazendo tratamento com choque na cabeça”;  “Coitada, está parecendo bicho”; “Não fala coisa com
coisa”; “É muito sofrimento e ainda se mija e se defeca toda”;” Os médicos estão
totalmente sem “esperança quanto à sua recuperação”.

Recordar nada mais é do que “trazer de volta ao coração”. Recordo-me que em meio a essa turbulência desalmada, comecei a pensar que passava a compreender a vida e que para fazê-la melhor e mais longeva teria que dar transparência e sentido de isenção a tudo. Porém tarefa árdua e somente aqueles que caminham na direção da sabedoria, são capazes do exercício dos fatores precedentes.  Todavia, refletia que para o homem, a aprendizagem com o desconhecido e a afetação com o que é humano, deveria ser a principal pauta para o destino. Assim o homem não estaria  garantido para nenhum futuro. Sofrimento, dúvida e angústia, seriam necessariamente ingredientes certos da existência. Sendo a alegria e a felicidade circunstâncias exíguas que escapam da complexidade para o simples da existência humana. Porém poucos são aqueles que suportam conduzir a vida no trilho da simplicidade.

Solicitei de mim mesmo, desde cedo, um olhar atento e delicado para tudo o que é humano. Exigi desde antes e para sempre sensibilidade e compreensão para o que possa significar acidentes de percurso na vida dos semelhantes. Claro sem a estratégia das concessões, mas sim com atitudes orientadas pelo desejo de ver a vida do outro pulsando indo em busca do que realmente faz a vida ter sentido, ou seja, vida de verdade. Mesmo que perto ou distante. Gostava de observar os detalhes das fisionomias das pessoas fosse em casa ou em qualquer outro ambiente. Raramente ia à região de comércio de minha cidade por opção. Pois minha mãe gostava de vestir os filhos para que pudessem acompanhá-la nas compras. Era inevitável, que, vez ou outra, eu tivesse que ir. Claro que sempre era uma jornada absurda. Porém aproveitava para olhar as pessoas. Assim, os gestos, como andavam a arquitetura humana que cada um representava, se velho ou jovem, e mais, como teria sido a história daquele ser. Às vezes, de segundo a segundo, pensava que no instante do encontro de olhares jamais viria a encontrar-me com aquela pessoa. Outros momentos eram insistentes meu diálogo com a morte:
_ Quando você vai levar aquela velha ou aquela criança?

Respondia-me: _ “Não levo ninguém, pois apenas acompanho a vida de todos, com  discernimento e nenhuma emoção. Não sou passional, apenas sou vigilante e matreira. Aproximo-me sempre daqueles que estão vivendo o insuportável da existência. Não funciono no registro do tempo e sim no registro dos rostos. A angústia e o pesadelo são os meus faróis.”

Sempre que se iniciava a interlocução mórbida o cenário mudava. O que consistia em pessoas andando nas ruas, umas com pressa, outras absortas, olhando vitrines com o desejo magnificado querendo levar tudo para suas casas, veementemente pautadas por manhãs e tardes ensolaradas. O cenário transformava-se em mais ninguém e nenhuma vitrine e a claridade desaparecia e uma névoa escura cercava-me de pavor e de certa excitação que somente as crianças são capazes de experienciá-la.

Lembro-me que minha mãe perguntava-me da performance de silêncio a que me submetia. Mas mesmo num estado de  horror, insistia.
_ Onde você mora? Você mora longe daqui?
_  “Moro em vários lugares ao mesmo tempo. Moro nos hospitais e também nas creches.
Passeio na verdade em todos os lugares e busco persistentemente compreender o mundo. E  se você me perguntar, do que gosto. Responderei que sou fascinada pela fragilidade escondida na arrogância. Não escolho ninguém, sou escolhida. Minhas ações são a espreita. Não faço discurso e não tenho aviso. O silêncio “é a única coisa que me movimenta.”.

Eram diálogos rápidos. Tenho a impressão de que duravam apenas alguns segundos. Procurava encerrá-los, sendo que começava a tremer meu interior. Ficava  apavorado, porém algum sentimento bom fazia com que voltasse a repeti-lo. Todavia, não contava para ninguém, era uma espécie de pacto impenetrável.

Minha curiosidade pela vida era insistente e prevalecente quanto a tudo que significava tormento. A vida estava sempre no circuito da perseverança e da plausibilidade da esperança. Impedia-me com força da desistência. Meu mundo era para mim mesmo compreensível e pouco dava respostas às intervenções do entorno  e das pessoas. Solucionava tudo no ambiente de minha própria solidão. Sentia-me guardião de minha singular condição humana. Os impasses convocavam-me para as soluções por mais que o sofrimento fosse impiedoso. No entanto percebia que minha vocação maior na vida e para a vida era ser cronista do dilema humano, pois tudo me fazia questão.

Assim, penso, fui aprendendo a lidar com os eventos humanos. Fosse alegria, tristeza, morte, doença. Os  choros e os risos para mim eram a metáfora da vida. Todo laço familiar significava muito. Buscava compreender as sintonias e as rupturas. Ressaltava sempre o significado dos  papéis: o sentido de mãe, de pai, de irmão e de todas as proximidades circunstanciais das pessoas. Porém, sem dúvida, o quadro que mais me chamava a atenção era o de uma mãe chorando.

Lembro-me que em 1960 mudara para perto de minha casa a família Madruga. Era composta de pai, mãe e quatro filhos. Assim como algumas famílias brasileiras, os Madruga viviam um cotidiano sem motivo para a alegria, pois um dos filhos, Ricardo, aos dois anos de idade contraíra a paralisia infantil e ficara com as seqüelas advindas desse mal. Ricardo contava já com 12 anos quando o conheci. Moreno, rosto fino com expressão triste sugeria sempre perplexidade. Seus cabelos delineados em caracóis vivos ficavam sempre desalinhados. Sua voz grave era sintônica com os movimentos de braços e cabeça. Tinha um porte avantajado que contrastava com suas limitações físicas.

Fundei rapidamente uma amizade consistente com Ricardo. Parceria que se desenvolvia a cada encontro. Incondicionalmente compreendíamos as demandas emergentes. Fosse tristeza, angústia, alegria, esperança, ou, até mesmo, os medos quanto ao amanhã. Sobremaneira impressionava-me ouvir Ricardo falar sobre o que era sua vida. Sua sensibilidade causava-me arrepios comoventes. Seus motivos existenciais patrocinavam em mim esperança. O tour que meu amigo perfazia pelos consultórios médicos era desgastante em demasia.  Lembro que Ricardo submetia-se a cirurgias com uma freqüência que impressionava. Não sei dizer quantas. Mas era assim; uma no pé, depois no joelho e depois na perna esquerda e desse modo, sucessivamente, sessões de fisioterapia. Seu aliado incansável nessa luta pela vida era seu pai. Até hoje tenho como referencial imperativo para meus momentos de incertezas existenciais aquela imagem do Sr. Ricardo carregando o filho de casa para os médicos e dos médicos para casa. Marcou-me muito também o olhar de esperança do pai para o filho. Cada palavra, cada gesto, cada abraço, do pai de Ricardo, me faziam pensar que a vida de meu amigo,  estaria garantida.

Por volta dos 14 anos Ricardo já conseguia dar os seus primeiros passos com consistência. Nossos encontros eram constantes e lembro que seus pais resolveram transferir Ricardo para o mesmo colégio que eu estudava e recordo-me que fiquei muito alegre, pois até comentava com meus pais e os outros amigos, falava para esses que Ricardo era muito legal e que seria ótimo que estivesse estudando junto com a turma. Pelo lado de Ricardo eu percebia que o mesmo estava a cada dia que passava antes do inicio das aulas com a expressão de quem estava muito feliz e em todo momento de nossos encontros fazíamos planos para o nosso cotidiano no Colégio Suíço Brasileiro. Numa manhã de Domingo, Ricardo solicitara minha presença em sua casa. Imediatamente andei em sua direção. Deparei-me com uma situação que em milésimos de um tempo lógico interpretei que algo de grave ocorria com meu amigo.

Encontrei-o lívido e com a expressão de grande dor e ainda, seu corpo, parecia um pêndulo agitado que denunciava a agonia interior de alguém que sofria no âmago da atemporalidade. Em minha chegada, sem dar qualquer palavra, entregou-me um iogurte de morango. Disse-lhe que gostava muito de morangos. Ricardo dera um olhar para distante e disse-me: “_ Sim, é muito bom. Eu também gosto!”

Parecia-me estar vivendo um impasse. Provocado pelo balançar do corpo sem equilíbrio e o silêncio interrogativo de Ricardo.

                                                                         XXX

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Reflexão Urgente

 A pauta imposta pelos significantes não e sim em nossas vidas merece cuidados. É singular. Aprende-se cedo o dizer sim para todas as circunstâncias, ou seja, desenvolvemos performance desenvolta em utilizá-lo à medida do passar dos anos. Temos inegável dificuldade com o não, pois não ganhamos discernimento em colocá-lo a nossa disposição em nosso estar no mundo. Existencialmente a impossibilidade do recurso do não, emerge sempre como fator de intimidação e constrangimento. Enfraquece vitalmente, já que é acompanhante do medo. O não nos permite sustentabilidade cotidiana e implica o ser em uma luta sistemática contra a morte. Diferentemente do sim que é parceiro das concessões. O não livra-nos de sermos marionetes do outro.
Aos amigos desejo que o ano de 2012 seja o espaço e o tempo das mais incríveis realizações. E que cada pensamento e cada sentimento possam traduzir legitimamente todo um conceito verdadeiro de uma história de vida bem cuidada e muito desejada. Observação: a partir do dia 04/01, estarei postando de dois em dois dias capítulos de meu próximo livro Memória e Ficção: Uma Vida e Só Uma Vida.